quinta-feira, 2 de setembro de 2010

“Moinho Ao Vivo”

foto: washington possato



Não importa se o Moinho é um grupo baiano ou carioca. Os pés estão bem cravados à beira da Baía de Todos os Santos e as antenas instaladas às margens da Guanabara. O que se vê e ouve no CD/DVD “Moinho Ao Vivo” é que, mais do que baiano ou carioca, o Moinho é do palco.
Formado por três “veteranos” da música pop brasileira (Emanuelle Araújo, Lan Lan e Toni Costa), o grupo foi concebido no meio da efervescência que o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, viveu na última década, Forjado na famosa “escola da noite”, junto com uma série de parceiros cariocas, o trio conseguiu criar uma liga fortíssima e ainda acrescentar uma nova cara a um vasto repertório do samba baiano. O show desce fácil passando pela saudade de Caymmi (“Saudade da Bahia” e ”Eu não tenho onde morar”), pela Santo Amaro de Caetano (“É de manhã” e “Marinheiro só”), a Feira de Santana de Luiz Caldas (“O que que essa nêga quer”), o Campo Grande de Pepeu, Moraes e Galvão (“Besta é tu”), o Candeal de Carlinhos Brown (“O côco”), dá uma volta ali no bairro do Garcia de Riachão (no medley “Baleia”/“Cada macaco no seu galho”/“Vá morar com o diabo”) e vai terminar em outras diversas rodas do recôncavo. Os sabores de uma Bahia assim são fáceis de se sentir ou imaginar. E o clima naquelas terras é sempre quente.
Quando o promissor samba-reggae emergido das ladeiras de Salvador no fim da década de 80 descambou para a banalização da chamada “axé music”, amores e ódios extremos se criaram em torno da “música pop baiana”. Uma expressão como essa, aliás, talvez não fosse nem possível de ser pensada. Tudo era “axé”. E como a generalização nunca é uma via inteligente de análise, foi preciso esperar a poeira baixar. Motivadas pelo resgate do samba que os cariocas faziam com tanto sucesso na Lapa e, já distantes de sua terra natal, Emanuelle Araújo e Lan Lan se juntaram com o carioca de nascimento (e baiano por musicalidade) Toni Costa para inserir os sambas da sua terra naquele cenário tão rico que elas viam embaixo dos Arcos. Sem grilos, preconceitos ou mea-culpas, um dos grandes méritos do Moinho está em transitar tão bem e com tanta propriedade por obras baianas aparantemente tão diferentes, como a de Caymmi e Luiz Caldas, mas que no fundo são partes complementares uma história só, uma linha continua.
Nesse registro ao vivo fica fácil de ver toda essa Bahia na Lapa. Primeiro, visualmente: o palco foi o do Circo Voador e o público é aquele que fez do grupo um dos de maior sucesso na Lapa ao longo dos anos. Segundo, em termos musicais: ao vivo, o resultado do encontro da bateria quase roqueira de Maurício Braga, com o baixo de Pedro Mazzillo (conhecido músico das rodas de choro e samba no Rio) e as guitarras e distorções de Toni é ainda mais visceral. A voz de Nara Gil completa o time que está sempre na estrada com o Moinho e dá segurança para Emanuelle encontrar novas melodias e divisões conforme o show evolui. Completando a banda de apoio, vêm um naipe quente de metais (Zé Canuto no sax tenor, Marcio André no trumpete e Aldivas Ayres) – que participa em seis faixas do DVD (quatro no CD) – e o multi-instrumentista Felipe Pinaud, que entra na mistura tocando bandolim, violão, baixo, guitarra, flauta e agôgô. Lan Lan e Manu tomam conta da frente do palco. A primeira esnoba, além do já conhecido talento percussivo, uma facilidade para colorir os arranjos de voz, inserir versos falados, e desenhar os vocais de apoio. Segura e confiante, Lan Lan até se arrisca em cantar sozinha em alguns momentos do show. Já Emanuelle Araújo, como bem observa Kassin em uma fala do making-of, impressiona pela capacidade de manter a voz constante e precisa durante o show inteiro. Além de dançar, ela sorri e seduz com uma presença cênica muito particular, certamente reforçada pela também crescente carreira de atriz. Se Geraldo Pereira tivesse a visto cantando "Falsa Baiana", como ela faz no DVD, referendaria Manu como o exemplo a ser seguido de menina "filha de São Salvador".
Além de todo o repertório de clássicos do samba da Bahia, que imprimem o DNA da banda, há ainda um repertório próprio muito bem resolvido. Juntas, essas faixas ocupam mais da metade do CD e DVD. É o caso, por exemplo, do hit “Esnoba”, de “Na Lapa” ou mesmo de “Samba menina”. Músicas dançantes, com linhas melódicas fortes, daquelas que só precisam das duas primeiras notas para identificá-las e sair cantando junto. E para levar o samba para outras fronteiras além da ponte Rio-Bahia, a banda recupera os presentes dados no primeiro disco por um paulista, Nando Reis (“Hoje de noite”), e uma mineira, Ana Carolina (“Doida de varrer”).
Contando novamente com a ajuda das mãos poderosas de Berna Ceppas e Kassin, (produtores do disco, amigos e entusiastas deles de longa data), a sonoridade do Moinho mantém a assinatura criada no álbum de estúdio “Hoje de noite” (2007), também produzido pela dupla. Como o objetivo do show era registrar toda a força da banda no palco, há poucos convidados. Kassin é um deles, tocando baixo em “Fim de semana” e “Hoje de noite”. O outro é Guga Machado, que toca percussão em “Esnoba” e no medley de sambas de roda. Gilberto Gil e Dudu Nobre aparecem em duas faixas nos extras do DVD. Gil, que certa vez acertou ao definir o som do trio como “um samba na pressão”, vem como representante da cartilha baiana em que o Moinho reza. A escolha de “Aquele abraço” não deixa de ser uma homenagem à cidade que abraçou e que foi abraçada por todos eles. Já com Dudu Nobre a música escolhida foi “Casa de bamba” de Martinho da Vila. Um encontro que sela a ponte com o samba carioca, que foi onde o Moinho cresceu. Esta faixa aparece ainda como bonus track no CD.
Além reafirmar e atualizar a força de alguns clássicos da memória e identidade baiana, o lançamento deste trabalho do Moinho oferece uma cor e uma temperatura bem diferente do que tem se visto na música nacional. Um som pop, sem pretensões, nem subterfúgios visuais, bem trabalhado, que cruza diferentes culturas nacionais, que é cuidadoso, mas ainda assim despretensioso. É o pé que balança, é o sorriso revelado no canto da boca, é aquela boa lembrança e tudo mais que uma hora e pouco de boa música pode oferecer.



(Bruno Maia - Outubro/2009)